15/10/2021
Quando ouviu falar da história de quatro crianças que estavam escondidas do grupo radical Talebã em um apartamento em Cabul, capital do Afeganistão, um rabino a milhares de quilômetros de distância – no Brooklin, em Nova York (Estados Unidos) – decidiu pegar o seu telefone e fazer uma ligação que acabaria sendo decisiva.
Dias antes, afegãos haviam se reunido em multidões nos portões do aeroporto de Cabul, desesperados para deixar o país após a tomada de poder pelo Talebã, em 15 de agosto.
“Pensei naquelas quatro crianças, todas com menos de 18 anos, e pensei ‘quem sabe se elas ainda estão vivas, eu preciso tentar encontrá-las'”, conta à BBC o rabino Moshe Margaretten, de 41 anos de idade.
Depois de saber que a mãe das crianças havia saído do Afeganistão para os Estados Unidos anos antes, após o súbito desaparecimento do marido – deixando as crianças para trás com parentes -, o rabino saiu em busca da advogada representante da família.
“Eu disse que, acreditasse ela ou não, eu achava que poderia ajudar aquelas crianças a chegar ao aeroporto”, conta ele.
‘Nossos pais também foram forçados a fugir’
O rabino Margaretten conta que a sua missão de reunir as quatro crianças e a mãe delas nos Estados Unidos era algo urgente que ele queria concluir com rapidez.
Com o auxílio da sua organização – a Associação Tzedek – e de uma rede de pessoas na região, ele decidiu iniciar o movimento.
“Colocamos o nosso pessoal de campo para cuidar das crianças e, uma hora depois, eles estavam dentro do aeroporto”, conta ele. Poucas horas depois, elas estavam voando em direção ao Catar, antes de finalmente atingir seu destino: Albany, no Estado de Nova York.
O rabino conta que se emocionou muito quando encontrou a família, após seu reencontro.
A associação do rabino informa que já assistiu dezenas de ativistas, juízes e outras pessoas que trabalhavam para o antigo governo afegão ou como intérpretes de forças britânicas e americanas no país.
“Por que um rabino judeu ortodoxo do Brooklyn ajudaria muçulmanos no Afeganistão? A resposta é muito simples”, afirma ele: “meus pais e avós foram sobreviventes do Holocausto”.
O rabino, cujos avós são da Hungria, relembra que os horrores enfrentados pela sua família quando os nazistas se espalharam pela Europa durante a Segunda Guerra Mundial – e testemunhando a forma como os eventos se desenvolveram no Afeganistão – significavam que ele não podia deixar de fazer alguma coisa.
“Os nossos pais foram forçados a fugir pelas suas vidas; eles passaram por sofrimento muito similar”, conta ele.
O rabino Margaretten não tinha conexões reais com o Afeganistão antes de receber o contato de um judeu afegão – o comerciante de tapetes Zablon Simintov – em agosto.
Simintov, que ficou conhecido como o último judeu do Afeganistão, estava desesperado para sair do país, que, segundo ele, se tornou ainda mais perigoso do que na época em que o Talebã assumiu o controle inicialmente, duas décadas atrás.
“Depois que consegui que Zablon saísse (do Afeganistão), comecei a falar com as pessoas no campo e eles disseram ‘existem muitas pessoas em perigo, talvez você devesse ajudar'”, relembra o rabino.
Margaretten começou a angariar fundos junto à comunidade judia do Brooklin e de Chicago, nos Estados Unidos, com o objetivo de trazer com segurança o máximo possível de pessoas.
Sua associação ajudou no deslocamento seguro das mulheres da seleção nacional de futebol júnior do país, permitindo que elas e suas famílias cruzassem a fronteira.
Muitas das jogadoras – com idades de 13 a 19 anos – receberam posteriormente permissão para reinstalar-se no Reino Unido, após semanas no Paquistão.
Quanto mais o rabino Margaretten se envolvia, mais ligações ele recebia. A reação o sobrecarregou rapidamente.
“Cada vez mais grupos entravam em contato – as pessoas me ligavam no meio da noite, chorando e dizendo ‘rabino, me ajude, minha vida está em perigo'”.
Ele conta que tentar determinar quem estava em maior risco ou deveria receber prioridade era muito difícil.
“De um lado, estou muito feliz pelos que consegui ajudar, mas, por outro lado, é muito triste – existe um limite para o que eu posso fazer”.
O rabino Margaretten formou uma equipe que, segundo ele, trabalha dia e noite para processar documentos e pedidos de visto para cidadãos afegãos em situação de risco. “Eles sabem o que estão fazendo”, afirma ele.
A despesa maior, segundo o rabino, é fazer com que as pessoas saiam do país, mas a associação também paga a estada deles em casas e hotéis seguros, além de alimentação, roupas e despesas médicas.
‘Eles me tiraram de lá em 24 horas’
Uma das pessoas que receberam ajuda do rabino Margaretten é Fareeda (nome fictício), uma ativista com 25 anos de idade que luta pelos direitos das mulheres e das crianças.
“Quando o Talebã assumiu o controle, eu perdi tudo”, conta ela: “minha esperança,meus sonhos, minha liberdade; eu não podia sair de casa, não podia trabalhar nem ir para a universidade – eu perdi a minha personalidade”.
Ela conta que “lutou e resistiu” pelos seus direitos ao longo dos anos e a volta do Talebã ao poder foi devastadora para ela.
“Organizei protestos para pressionar o Talebã a preservar nossos direitos”, conta ela. Fareeda usou as redes sociais para compartilhar imagens das manifestações, que foram violentas em alguns casos, com o Talebã usando munição real, bastões e chicotes.
As fotografias foram posteriormente usadas para identificar Fareeda.
“Eles vieram até o meu distrito”, relembra ela, descrevendo como o Talebã veio bater às portas das casas, forçando-a a se esconder.
Com medo do que poderia acontecer, Fareeda pediu ajuda e foi rapidamente colocada em contato com a equipe de campo do rabino Margaretten.
“Eles retiraram a mim e a toda a minha família do Afeganistão em 24 horas”, conta ela, concluindo: “Estou muito feliz”.
À medida que as forças do Talebã avançavam rapidamente pelo Afeganistão em agosto, as Nações Unidas advertiam que o grupo estava intensificando sua busca por pessoas que trabalhavam para forças estrangeiras e funcionários do governo anterior.
Aalem (nome fictício) trabalhou como intérprete afegão e entrou em contato com o rabino por meio das suas conexões internacionais.
Ele conta que era adolescente em 2003, quando se voluntariou para interpretar para o então secretário de Defesa do presidente norte-americano George W. Bush, Donald Rumsfeld, já falecido.
Agora com 36 anos, Aalem afirma que teme pelo futuro do seu país e está aliviado por ter escapado. “Fui um dos ativistas que precisaram fugir”, afirma ele. “A mudança de regime fez com que eu me sentisse muito vulnerável [porque] é muito perigoso para antigos intérpretes. O Afeganistão não é mais uma opção de lugar para viver.”
Ele conta que a Associação Tzedek é muito eficiente na identificação de pessoas vulneráveis, mas adverte: “existem milhares de outros que ainda precisam do mesmo apoio”.
Nos dias que antecederam a tomada de controle de Cabul pelo Talebã, aviões norte-americanos e da coalizão evacuaram mais de 123.000 civis – mas não se sabe quantos deles eram cidadãos afegãos.
Milhares ainda estão tentando sair do país todos os dias. O rabino Margaretten afirma que ele prosseguirá com seus esforços para ajudá-los “pelo tempo que for necessário”.
(*Os nomes dos refugiados foram alterados porque, no momento da reportagem, eles estavam em outros países, aguardando para viajar para seus novos destinos.
BY ALEXSANDER QUEIROZ SILVA
Fonte: BBC Brasil