18/01/2022
A BBC obteve gravações extraordinárias que acreditamos serem de telefonemas feitos por um ex-ditador do Oriente Médio, o então presidente tunisiano Zine al-Abidine Ben Ali, quando ele deixou o país em 2011. Esses momentos finais mostram como sua autoridade desmoronou, selando o destino de sua ditadura de 23 anos, em meio à Primavera Árabe, onda de revoltas pró-democracia da região.
Ben Ali morreu no exílio em 2019.
As gravações foram analisadas por especialistas forense que não encontraram evidências de adulteração ou manipulação. A BBC também reproduziu essas gravações para pessoas que conhecem os indivíduos envolvidos e acreditam que as vozes são genuínas, reforçando a tese da autenticidade das gravações. No entanto, algumas das pessoas envolvidas contestam fortemente sua veracidade.
Se genuínas, as gravações dão uma visão incrível da mudança de humor de Ben Ali nas últimas 48 horas de seu regime, quando ele lentamente começava a entender o verdadeiro impacto dos protestos que abalaram seu temido estado policial.
As gravações — escute trechos no vídeo acima — começam na noite de 13 de janeiro de 2011. A primeira é uma chamada para um confidente próximo, que se acredita ser Tarak Ben Ammar, um magnata da mídia que é conhecido por ter incentivado o diretor George Lucas a filmar o primeiro filme de Guerra nas Estrelas na Tunísia. Mais cedo naquele dia, Ben Ali fez um discurso televisionado para a nação, na tentativa de reprimir o ímpeto das manifestações de massa.
O descontentamento generalizado com as dificuldades econômicas e décadas de governo autocrático e corrupção eclodiu semanas antes, depois que um jovem vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi, ateou fogo a si mesmo, quando autoridades o impediram de vender produtos na cidade de Sidi Bouzid. Em 13 de janeiro, cerca de 100 pessoas haviam morrido nos protestos, que agora tomavam as ruas da capital.
Mas Ben Ali parece tranquilo quando Ben Ammar o cobre de elogios em uma conversa.
“Você é maravilhoso, este é o Ben Ali que estávamos esperando!” diz Ben Ammar na gravação.
Ben Ali é autodepreciativo, dizendo que seu discurso não tinha fluência, mas seu confidente o tranquiliza.
“Nem um pouco”, responde. “Você é um homem do povo. Você fala a língua deles”.
Ben Ali ri, aparentemente aliviado. Mas o discurso feito ao povo tunisiano claramente não é suficiente. No dia seguinte, os protestos se intensificam e ameaçam invadir o Ministério do Interior. São feitos arranjos para que a família de Ben Ali pegue um voo para fora do país para sua própria segurança — com destino à Arábia Saudita — e Ben Ali é então persuadido a escoltá-los, diz ele.
O conteúdo das próximas gravações seriam de Ben Ali neste voo.
Ouvimos ele fazendo uma série de ligações cada vez mais frenéticas para três pessoas — que se acredita ser seu ministro da Defesa, o comandante do Exército e um confidente próximo, Kamel Eltaief.
Ele começa perguntando a alguém que entendemos ser o Ministro da Defesa Ridha Grira sobre a situação na Tunísia. Grira diz a ele que um presidente interino está agora no lugar. Ben Ali pede a Grira que repita esta informação três vezes, antes de responder que estará de volta ao país “dentro de algumas horas”.
Ele então liga para um homem que a BBC acredita ser seu confidente próximo, Kamel Eltaief. Ben Ali diz a Eltaief que o ministro da Defesa lhe garantiu que os eventos estão sob controle.
Eltaief é direto em sua resposta.
“Não, não, não. A situação está mudando rapidamente e o Exército não é suficiente”, diz seu amigo.
Ben Ali o interrompe para perguntar: “Você recomenda que eu volte agora ou não?” Ele tem que repetir a pergunta mais três vezes antes que Eltaief responda.
“As coisas não estão indo bem”, Eltaief finalmente responde.
Ben Ali então faz uma ligação para quem acreditamos ser o comandante do Exército, o general Rachid Ammar. Ammar parece não reconhecer a voz do outro lado da linha. “Eu sou o presidente”, Ben Ali precisa dizer.
Ammar assegura que “está tudo bem”. Mais uma vez, Ben Ali faz a mesma pergunta que fez a Eltaief — se ele deve retornar à Tunísia agora — e Rachid diz a ele que seria melhor para ele “esperar um pouco”.
“Quando virmos que você pode voltar, nós o informaremos, senhor presidente”, disse Ammar a Ben Ali.
Ele liga para seu ministro da Defesa mais uma vez, novamente perguntando se ele deveria voltar para casa, e desta vez Grira é mais direto, dizendo a Ben Ali que ele “não pode garantir sua segurança” caso o presidente retorne.
Pouco depois da meia-noite, o avião do presidente Ben Ali pousa em Jeddah, na Arábia Saudita. Ele ordena que o piloto prepare a viagem de volta, e ele e sua família são escoltados para a Casa de Hóspedes do Palácio do Rei Faisal.
Mas o piloto desobedece a ordem. Ele abandona Ben Ali e voa de volta para a Tunísia.
Acordando na Arábia Saudita na manhã seguinte, Ben Ali liga novamente para o ministro da Defesa. Grira admite que o governo não consegue controlar mais o que está acontecendo nas ruas. Ele diz a Ben Ali que até se fala em golpe. Ben Ali descarta isso como uma ação de “islamistas”, antes de falar mais uma vez sobre voltar para casa.
Grira agora parece tentar falar a verdade ao seu chefe.
“Há raiva nas ruas de uma forma que não consigo descrever”, diz Grira. Ele tenta ser bastante direto com o presidente: “Para que você não possa dizer que eu o enganei, e a decisão é sua”.
Ben Ali tenta defender sua reputação. “O que eu fiz com [o povo que foi para] as ruas? Eu os servi.”
“Estou lhe dando a situação, não uma explicação”, responde Grira.
BY ALEXSANDER QUEIROZ SILVA
Fonte: BBC Brasil