01/04/2021
No alto das montanhas da China, uma estrada solitária leva ao Tibete. Percorrendo mais de mil quilômetros, a rodovia Qinghai-Tibet chegou a transportar 85% de todas as mercadorias que entram e saem da região.
Mas foi construída sobre areias movediças. Ou melhor, solo derretido. O permafrost (a camada perene de gelo) abaixo da rodovia está derretendo, fazendo com que o terreno ceda.
Isso, por sua vez, enverga e distorce a própria estrada. Alguns trechos da rodovia agora são marcados por grandes rachaduras.
Em outras partes, a superfície da estrada ficou ondulada e irregular, se deformando à medida que o solo abaixo afunda.
Pesquisadores que estudaram essas mudanças ao longo do tempo na China observaram que o ritmo de derretimento do permafrost está aumentando, assim como os danos acumulados nesta e em outras rodovias.
Um artigo publicado em abril de 2020 afirma que os responsáveis pela construção e manutenção de estradas em áreas de permafrost nesta parte do mundo vão enfrentar “desafios de engenharia significativos” à medida que o degelo se agravar nos próximos 100 anos. Os engenheiros ferroviários terão problemas semelhantes.
Nesta região — e em vários outros climas frios —, o permafrost que se manteve firme por milhares de anos está agora se infiltrando no solo aquecido.
Prédios, estradas, ferrovias e dutos construídos nessas áreas correm cada vez mais risco de avaria.
Invernos mais quentes
O derretimento do permafrost representa um perigo para o mundo inteiro, uma vez que armazena enormes volumes de carbono que podem ser liberados na atmosfera.
Mas, no curto prazo, são as pessoas que vivem nessas regiões que estão sentindo o impacto primeiro, porque o aquecimento está acontecendo mais rápido no Ártico e em lugares montanhosos, por exemplo.
Por muitos séculos, os indígenas que vivem em regiões frias foram capazes de se adaptar ao clima. Mas quando as sociedades industrializadas se espalharam para esses lugares remotos, elas tentaram dominar a natureza selvagem ártica com concreto e aço.
Infelizmente, a industrialização também acelerou as mudanças climáticas, levando invernos mais quentes para essas regiões.
A lista de estruturas e edifícios conhecidos por terem sido danificados pelo permafrost é longa e variada. Inclui as paredes de blocos de apartamentos na cidade russa de Yakutsk, que agora estão se partindo.
Oleodutos na Rússia e em outros países correm o risco de romper graças à mudança no solo, podendo levar a desastrosos derramamentos de óleo.
Também é o caso da Igreja de Nossa Senhora da Vitória em Inuvik, no Canadá, onde o clero viu a construção se deformar ao longo dos anos enquanto o solo abaixo dela cedia.
‘Problemas enormes’
Os engenheiros devem agora levar em conta as flutuações perigosas de um terreno outrora sólido.
Ao fazer isso, eles estão criando maneiras inovadoras de resfriar a Terra sob seus pés, para tentar salvar as estruturas humanas da instabilidade causada pelo degelo.
Guy Doré viu esses efeitos. As longas rachaduras no asfalto de uma estrada podem ser tão amplas que você consegue enfiar o pé na fenda.
Doré, da Universidade Laval, no Canadá, estuda há anos o que degelo do permafrost causa na infraestrutura construída.
“Os problemas são enormes”, diz ele, acrescentando que cerca de metade da extensão das estradas construídas em áreas de permafrost no Canadá correm risco de se tornarem instáveis.
“Estamos falando de milhões de dólares em custos adicionais de manutenção em áreas onde você não tem muitos recursos para fazer isso.”
A desestabilização do solo devido ao derretimento do permafrost é um processo lento e gradual. Se um trecho de asfalto rachar, você não pode simplesmente recapear e deixar pra lá.
À medida que o solo continua a se deformar, os danos vão aparecer novamente, talvez um ano depois.
Asfalto quente
Quando as pessoas construíram estradas nessas áreas isoladas, presumiram que o degelo do solo poderia ameaçar a estabilidade das mesmas, diz Doré.
Por isso, os engenheiros de meados do século 20 geralmente espalhavam cascalho no solo rico em gelo antes de construir a estrada no topo.
O cascalho tinha o efeito de isolar o solo abaixo, estabilizando o terreno. Mas em alguns lugares esse amortecedor não é mais eficaz porque grande parte do gelo derreteu.
“Estamos num ponto em que a degradação está acontecendo no antigo permafrost, que nunca derreteu”, explica Doré.
A mudança climática pode ser um fator importante por trás dessas mudanças, mas não é o único. O asfalto escuro usado em muitas estradas absorve o calor do Sol e o distribui para o solo logo abaixo, o que acelera o degelo.
O dano tende a ocorrer de forma localizada. Por exemplo, cerca de 20% da rodovia Qinghai-Tibet acumulou avarias devido à instabilidade do solo até agora, enquanto o restante permanece relativamente estável, por ora.
Construções em risco
Os edifícios, apesar de terem dimensões muito menores, também estão correndo risco.
De acordo com o jornal americano The New York Times, o degelo do permafrost causou afundamento do solo e danos em cerca de mil 000 edifícios na cidade russa de Yakutsk.
Com uma população de 280 mil pessoas, é a maior cidade do mundo construída em uma área de permafrost.
Uma história semelhante aconteceu em Svalbard, um arquipélago norueguês. Centenas de casas foram demolidas nos últimos anos porque foram construídas sobre alicerces de madeira que agora se tornaram instáveis no terreno flexível.
Infelizmente, essas dores de cabeça só parecem piorar com o tempo. Em 2020, pesquisadores locais registraram o verão mais quente em Svalbard desde que os registros começaram.
“Vimos um derretimento sem precedentes nas geleiras e degelo do permafrost”, afirma o cientista polar Kim Holmén, do Instituto Polar Norueguês.
Evitando o pior
É possível diminuir o impacto nas construções usando fundações mais robustas ou melhorando a ventilação sob a estrutura.
Por exemplo, em algumas cidades russas, acredita-se que um terço ou metade dos edifícios tenham acumulado danos devido à perda do permafrost — mas alguns poderiam ter sido evitados com uma melhor manutenção ao longo dos anos.
Uma estimativa, publicada em 2018, sugere que um terço da infraestrutura construída do Ártico corre risco de sofrer danos em decorrência do permafrost nos próximos anos.
No norte do Canadá, uma construção revela como pode ser difícil mitigar essas pressões. A Igreja de Nossa Senhora da Vitória, na pequena cidade de Inuvik, foi construída em forma de iglu há 50 anos.
O missionário que supervisionou sua construção explicou mais tarde que a forma cilíndrica tinha o objetivo de ajudar a redistribuir as tensões do solo à medida que ele congelasse e descongelasse com o tempo.
A igreja também fica sobre uma forte laje de concreto em forma de disco gigante, com uma camada de cascalho por baixo.
Isso protegeu a construção da geada que deformava o solo no passado, mas com o aumento da perda de permafrost, a igreja agora começou a se inclinar — como um barco com fundo de concreto balançando lentamente em um mar de solo em movimento.
‘Futuro incerto’
Jon Hansen, bispo de Mackenzie-Fort Smith, conhece bem a igreja católica. Ele já foi seu pároco, e agora ela faz parte de sua diocese.
Ele diz que o disco da fundação começou a rachar. O chão agora se inclina de forma irregular, e algumas partes se ergueram, bloqueando as portas.
A situação está tão ruim que os funcionários precisam ajustar as portas internas todos os anos, para evitar que emperrem. “A igreja ainda pode ser usada, mas seu futuro é incerto”, diz Hansen.
Ele acredita que as temperaturas mais altas causaram o degelo do permafrost, mas os problemas da igreja provavelmente foram agravados pelo aumento de construções nas proximidades. A presença de mais edifícios significa que o solo tem menos capacidade de esfriar.
Os funcionários da igreja exploraram maneiras de ajustar a estrutura para torná-la mais resiliente, por exemplo, trocando os postes de madeira que sustentam o prédio por outros de aço ajustável.
Eles também começaram a ventilar o forro sob o piso da construção, acima da fundação de concreto, a fim de manter o terreno abaixo o mais frio possível.
Pesquisadores locais estão agora monitorando essas intervenções para ver se são eficazes.
O design da igreja, diz Hansen, é uma prova da engenhosidade dos primeiros desbravadores do Ártico, mas também um alerta de quanto o clima global está mudando.
A tecnologia para congelar novamente o solo e estabilizar a construção poderia, em teoria, ser instalada, mas isso, diz Hansen, estaria muito além do orçamento da igreja.
Em outras partes do Ártico, empresas com mais recursos estão recorrendo à tecnologia para manter o solo congelado e estável.
Algumas companhias de petróleo, por exemplo, instalam tubos que permitem que o calor escape do solo para o manter frio, de forma que o terreno que sustenta os dutos não se desloque o suficiente para comprometer sua integridade.
Entre as empresas que adotam essa abordagem, está a ConocoPhillips. De acordo com a companhia, os aparelhos contêm um fluido que circula de forma passiva, levando o calor do solo para a superfície, onde é dissipado.
O Sistema de Oleoduto Trans-Alaska de 1,3 mil km utiliza mais de 124 mil desses dispositivos.
Outras abordagens
Doré e seus colegas passaram anos pesquisando a eficácia de várias outras técnicas destinadas a manter o solo fresco diante do aumento das temperaturas globais.
Uma abordagem simples é construir aterros rodoviários usando pedras grandes com vãos consideráveis entre elas. As brechas atuam como poros, permitindo que o calor escape para a superfície.
Experimentos ao longo da Alaska Highway entre 2008 e 2011 revelaram como isso poderia manter o permafrost congelado ao longo do ano.
Outras medidas, como o uso de materiais de construção rodoviários de cores claras e a proteção do aterro sob um galpão de madeira, também podem mitigar os efeitos do aquecimento.
Em grande escala, qualquer uma dessas técnicas exige muito esforço e dinheiro, o que significa que nem sempre são opções viáveis para os construtores de estradas.
Inovação no Tibet
No Planalto Tibetano, vários métodos inovadores foram adotados. Ao longo da via expressa Gonghe-Yushu, que passa pelo permafrost a leste da rodovia Qinghai-Tibet, camadas de rocha porosa e dutos de ventilação permitem que o ar leve o calor de debaixo da estrada para a superfície, resfriando o solo.
“Com base em vários anos de monitoramento de desempenho, esses métodos de mitigação parecem ter sido eficazes”, escreveram os pesquisadores em um estudo de 2020.
Doré conta que, às vezes, ouve as pessoas dizerem que os danos causados pela degradação do permafrost não serão um problema por muito tempo, porque em breve o permafrost dessas áreas terá derretido, deixando o solo estável permanentemente.
Mas o permafrost, na verdade, derrete incrivelmente devagar. “Não veremos o permafrost desaparecer nos próximos 30 anos”, diz ele.
Na verdade, os problemas de engenharia associados a ele provavelmente continuarão pelos próximos cem anos.
E, dadas as consequências que estariam associadas à mudança climática acelerada e perda total do permafrost, esse é um dia pelo qual ninguém deveria ansiar.
Fonte: BBC Brasil